Na segunda metade do século 20
praticamente todos os países da América Latina padeceram com ditaduras militares
e as feridas dessas experiências estão longe da cicatrização. Perda de direitos
civis, torturas, censura e desaparecimento de presos políticos foram fatos
constantes nesses tempos de triste memória. Qualquer ditadura é nefasta, mas
algumas foram mais violentas e/ou mais longevas. A do Brasil durou de 1964 a
1985, a da Argentina foi curta (1966-1973), mas uma das mais violentas e a do
Chile, liderada pelo general Pinochet, conseguiu reunir as duas coisas: truculência
e longevidade (1973-1990). Depois desses anos de fúria e de silêncio, o país se
redemocratizou, seus cidadãos altamente politizados já elegeram presidentes de
esquerda e de direita, mas as marcas deixadas pelas botas de Pinochet ainda
podem ser notadas na sociedade chilena e por consequência na arte produzida por
ela.
O Chile foi o país homenageado na
terceira edição do MIRADA (Festival Ibero-Americano de Artes Cênicas de Santos
promovido pelo Sesc). Os sete espetáculos apresentados primaram pelo alto nível
profissional, apresentando formas e conteúdos bastante diversos, todos eles,
porém, de uma maneira ou de outra denunciando (ou refletindo sobre) a luta pelo
poder, o abuso de autoridade e o uso da violência pelos poderosos, fatos
corriqueiros nos 17 anos em que o país viveu sob o jugo dos militares e que
podem ressurgir a qualquer momento. Mais do que nunca, relembrar é preciso, conforme
o fazem os trabalhos apresentados no MIRADA e que são resenhados a seguir.
A Imaginação do Futuro - Foto de La Resentida
A peça que abriu a mostra santista foi A Imaginação do Futuro da Compañia La Resentida. Espetáculo
anárquico e politicamente incorreto que procura retratar a situação política do
Chile atual por meio de uma visão irreverente e pouco abonadora de Salvador
Allende e de seus últimos dias na presidência do Chile. A visão que o grupo tem
do governo socialista de Allende é bastante discutível, porém não se pode negar
que o espetáculo tem muita energia e conta com elenco jovem e talentoso.
O Jardim das Cerejeiras - Foto de Dana Hosova
Em outro extremo, seguindo a linha mais
tradicional do chamado teatro “bem feito”, o grupo Teatro Camino apresentou O
Jardim das Cerejeiras, um Tchekhov na medida certa: boas interpretações
para as já clássicas personagens da peça, cenário simples e sugestivo,
iluminação dando ao ambiente cor sépia e direção delicada que privilegia as
palavras do belo texto do autor russo. A peça é um manifesto contra o uso do
poder econômico, no caso representado pelo personagem Lopakhin.
Otelo - Foto de Rafael Arenas
Otelo da Compañia
Viajeinmóvil é ótimo exemplo de como realizar adaptação inteligente de um
clássico: dois atores/manipuladores representam o quarteto principal da
tragédia de Shakespeare: Otelo e Desdemona (bonecos), Iago e Emília (atores). A
manipulação dos bonecos é precisa e em certos momentos o corpo do boneco se
confunde com o do ator criando efeito bastante interessante. Jaime Lorca e
Teresita Iacobelli são atores com pleno domínio de seu ofício alterando com
muita flexibilidade as entonações de cada personagem a que dão voz. Apenas uma
cama, alguns objetos e os bonecos com as cabeças de Otelo, Desdemona e Cassius
são suficientes para os dois atores nos contarem a triste história do mouro de
Veneza, sob o ponto de vista do maquiavélico manipulador Iago.
O Cavaleiro da Morte - Foto de José Cetra
O Homem Vindo de Nenhuma Parte - Foto de Pablo Sepulveda
O teatro de rua é bastante difundido no
Chile e se fez representar com dois espetáculos no MIRADA: O Cavaleiro da Morte do grupo La
Pato Gallina usa a estética dos filmes mudos para contar a saga do herói
nacional Manuel Rodriguez que lutou pela liberdade do Chile. Visualmente muito
bonita a peça apresenta os atores com máscaras expressionistas de cor preta que
contrastam com o cenário branco, a música que comenta a ação é tocada ao vivo
por uma banda de rock. É importante notar que o espetáculo está em repertório
há 14 anos com o elenco original. O Homem
Vindo de Nenhuma Parte do grupo La
Gran Reyneta se vale de estética bastante distinta usando enormes aparatos
técnicos e humanos para movimentar uma nave que vira barco, uma mão gigantesca
que persegue o herói, tablados que podem ser ora um cemitério ora uma ilha
paradisíaca, efeitos de explosão e de bombas. Em oposição a essa tecnologia
pesada a trama é bastante simples contando as viagens de um homem no tempo e no
espaço. Ambos os espetáculos são exemplos de teatro de rua bem produzido e que
atinge o público a que se destina.
A Reunião - Foto de Jorge Becker
Além de O Jardim das Cerejeiras, o teatro essencialmente de palavras foi
muito bem representado pelo mais radical A
Reunião, trazido pelo grupo Teatro em
El Blanco (do qual São Paulo já teve a oportunidade de receber Diciembre e o emblemático Neva). Estreia de Trinidad González como
autora e diretora, A Reunião reafirma
o grande talento interpretativo da atriz como a Rainha Isabel da Espanha num
embate com Cristovão Colombo que foi aprisionado por abuso de poder. Diálogos
ágeis e cortantes num trabalho com pouca movimentação cênica e cenário mínimo,
onde a presença do ator faz o espetáculo. Trinidad revela todo seu potencial
dramático tanto nas falas como nos silêncios e é bem coadjuvada por Nicolas
Pavez como Colombo.
Castigo - Foto de Valentino Saldivar
Castigo do grupo Teatro La Memoria é espetáculo singular. Aqui a palavra é mínima e
o gestual também. O pouco que acontece o faz de maneira muito lenta como o
menino olhando para o espelho, a empregada preparando a mesa para o jantar e
depois servindo a sopa, a reza antes da refeição, a criada cantando enquanto a
família come. Após o castigo que o menino recebe do pai, o realismo é
bruscamente quebrado por meio de uma tempestade de neve que invade a casa e
aniquila quase toda a família (o menino se safa entrando em cena após o
desastre com ar de vitória e de vingança). Baseado em texto autobiográfico de
August Strindberg o espetáculo é muito bonito e tem feições da Europa nórdica
lembrando os quadros do pintor holandês Vermeer. 60 minutos do mais puro
teatro.
Ao
meu modo de ver, Castigo e A Reunião foram os melhores espetáculos
não só da representação chilena, mas de todo o MIRADA.
Como se vê a representação chilena
primou pela diversidade e pela alta qualidade sempre lembrando que a liberdade
de expressão é um direito adquirido com muita luta e que deve ser preservada a
qualquer custo. Outra prova da
efervescência teatral chilena é a realização em janeiro de cada ano do Santiago a Mil, um dos mais importantes festivais
internacionais de teatro realizados na América Latina.