quarta-feira, 20 de novembro de 2024

DOM CASMURRO


                       A arte tem de ter algo que me tira do chão e deslumbra 

                                                                                      (Ferreira Gullar)

     Assisto a muitos espetáculos. Alguns não me dizem nada ou quase nada (saio como entrei), outros me dão muito sono, outros ainda me irritam e desenergizam, tem aqueles que eu gosto e são bem realizados não passando disso, mas é muito difícil acontecer a magia de eu me surpreender, ficar com os olhos arregalados, o coração palpitando e realmente ter a sensação de sair do chão com tanto deslumbramento. Só aí acontece a tão almejada magia dessa arte única chamada teatro, onde artista e público entram numa rara sintonia.

     Para minha alegria nos últimos dias essa magia aconteceu três vezes. Primeiro com a força política de Prontuário 12.528, depois com a beleza de Cão Vadio e agora com a surpresa de Dom Casmurro que eu corria o risco de não assistir, devido à pouca divulgação do espetáculo.

Rodrigo Mercadante e  Luci Salutes

     Trata-se de uma produção relativamente modesta, mas que tem o básico para ser um ótimo espetáculo: em primeiro lugar uma adaptação rigorosa e bem feita do texto de Machado de Assis (Davi Novaes), em seguida letras e músicas envolventes (Guilherme Gila), algo fundamental em todo musical que se preze, bons músicos, elenco impecável que é brilhante tanto interpretando como cantando e diretor de talento (Zé Henrique de Paula) que sabe harmonizar todos esses elementos.

Dispensa-se cenários grandiosos com escadaria, figurinos luxuosos e elenco numeroso, concentrando-se em contar a história de Bentinho e Capitu.

     Rodrigo Mercadante tem a melhor interpretação de sua carreira narrando ou interpretando Bentinho com todas nuances e dubiedades requeridas por esse personagem icônico de Machado de Assis. Um trabalho digno de ser lembrado nas listas dos melhores do ano

     Egresso da Banca dos Corações Partidos e muito bem-vindo aos palcos paulistanos Fábio Enriquez brilha como José Dias e dá um show de talento na cena sobre São Paulo.

Fábio Enriquez

     Luci Salutes compõe uma Capitu delicada e sabe dar seu recado na cena que acontece após os aplausos.

     Cleomácio Inácio como Escobar, marca mais um gol em seu trajeto, ainda curto, pelos palcos paulistanos.

     Nábia Villela enriquece todos os espetáculos em que participa, mesmo que seu papel seja pequeno, como é o caso de Dona Glória, mãe de Bentinho.

     Eduardo Leão interpreta Tio Cosme e Larissa Carneiro tem grande empatia com o público tanto como a velha prima Justina como a jovem Sancha.

     Completam o quadro os músicos Guilherme Gila, Daniel Alfaro, Felipe Parisi e Samir Alves. 

     Cabe ainda destacar a iluminação de Fran Barros que cobre de vermelho todas as cenas de ciúme e de desconfiança de traição de Bentinho.

     É com muito entusiasmo que recomendo esse espetáculo que tem lotado o Teatro Estúdio mesmo sem a divulgação merecida.

     Parabéns aos jovens idealizadores do projeto (A Casa Que Fala e Tomate Produções), o futuro do teatro paulistano está nas mãos deles. 

     DOM CASMURRO está em cartaz no Teatro Estúdio às segundas, terças e quartas às 20h. 

     CORRA PARA VER!!!

     20/11/2024


sábado, 16 de novembro de 2024

OUTONO

No Teatro do Sol as estações do ano não acompanham aquelas da natureza. Ali tudo começou no verão, foi direto para o inverno, agora está no outono e promete para breve a primavera, mas não faz mal qualquer que seja a estação ali sempre faz sol, fazendo jus ao nome,e um ar primaveril de renascimento está sempre presente.

O Grupo Gattu é isso, continuando a merecer o título de melhor acolhimento que eu lhe dei em 2017.

Tudo isso seria apenas bonito e simpático se não houvesse talento e criatividade, mas essas qualidades existem de sobra no grupo liderado pela incansável Eloisa Vitz que agora nos presenteia com um espaço reformado provido de um palco aumentado. 

Outono é o novo texto de Eloisa que pertence à tetralogia das estações do ano. 

Desta vez a dramaturga inova colocando no palco do teatro os atores fazendo cinema, diálogo oportuno uma vez que o espaço abrigará no futuro exibições de filmes, além dos espetáculos teatrais.

São várias cenas de filmagem desse novo filme intitulado Outono, essas cenas são permeadas por instantâneos da vida de cada elemento do elenco do filme.

A dramaturgia e a encenação, ambas assinadas por Eloisa, contemplam o momento de destaque de cada intérprete e mesmo dela que interpreta a diretora do filme, ao mesmo empo que tem um TOC de estar sempre se filmando no celular.

Mariana Fidelis, que já havia provado em Inverno que não é só bonita, volta a brilhar como a estrela Tereza Carrasco, aliando desta vez beleza e talento.  É muito bonita e sensual sua cena diante do espelho.

LIlian Peres faz a assistente da diretora e uma espécie de confidente do elenco, tudo com muita naturalidade e simpatia.

Jailson Nunes interpreta Adalio Pinto, com a energia do macho que faz jus ao nome.

Claudio Nasci começa bem no grupo interpretando o galã Mauro Sores.

Daniel Gonzales cresce a cada papel que faz no grupo demonstrando uma bem-vinda maturidade artística como o ator Alonso Peres e até se dando ao luxo de um “quase” nu em cena.

E o que falar de nossa querida Miriam Jardim, sempre brilhando em cena qualquer que seja o papel que faça? Sua luz como Catarina Levin ilumina não só o palco, mas toda a plateia.

O cenário, aproveitando o novo tamanho do palco, e a iluminação são também de Eloisa Vitz que acumula mais de cinco funções, executadas todas com muito amor e dedicação.,

Figurinos criados por Heron Medeiros, velho parceiro do grupo.

OUTONO é um espetáculo a que se assiste com um prazer delicado e um sorriso nos lábios. Tem um final muito bem bolado que não vou revelar aqui.

Que o novo CINE E TEATRO DO SOL abrigue filmes tão bons quanto os espetáculos teatrais ali apresentados e que receba uma boa resposta não só do público da zona norte, mas de todos os paulistanos.

LONGA VIDA AO CINE E TEATRO DO SOL!!

Outono fará oito apresentações por semana (que maravilha) de terça a quinta às 19h, sexta às 20h e duas sessões no sábado e domingo às 16h e às 20h.

NÂO DEIXE DE VER!

16/11/2024



quinta-feira, 14 de novembro de 2024

CLEYDE YÁCONIS

Faltavam poucos meses para Cleyde Yáconis completar 90 anos quando ela partiu. Ela faria aniversário no dia 14 de novembro e faleceu em 15 de abril de 2013.

Hoje ela estaria fazendo 101 anos.

Uma das maiores, senão a maior atriz, que nossos palcos já teve, começou sua carreira quase por acaso no Teatro Brasileiro de Comédia, o lendário TBC, em 1950. A irmã de Cacilda Becker era responsável pelo guarda roupa do teatro e substituiu Nydia Licia na peça Anjo de Pedra, quando esta teve que se ausentar para se submeter a uma intervenção cirúrgica. De tanto conviver com o grupo nos bastidores ela sabia o texto de Nydia de cor e sua estreia foi uma grande revelação. A partir daí Cleyde foi colecionando grandes interpretações e prêmios numa carreira de mais de 60 anos.  

A Geni de Toda Nudez Será Castigada (só no Rio de Janeiro), a Mary Tyrone de Longa Jornada Noite a Dentro, a Condessa de A Louca de Chaillot, o rapaz de Péricles e a Simone de Beauvoir de A Cerimônia do Adeus são apenas algumas das personagens que Cleyde imortalizou com suas atuações.

“Haverá algum lugar no mundo onde possamos colocar nossa esperança?”, essa fala de Simone de Beauvoir em A Cerimônia Do Adeus era dita por Cleyde com tal delicadeza que até hoje se eu fecho os olhos consigo ouvi-la na voz inconfundível dessa grande atriz.

Cleyde fez pouco cinema e muita televisão, mas era no teatro que ela mostrava sua maior grandeza. 

Seu último trabalho no teatro foi A Caminho de Meca em 2008, 58 anos depois de sua estreia no TBC. 

O desprendimento e até a modéstia de Cleyde podiam ser constatados na sala da casa em sua chácara em Jordanésia (que eu tive o privilégio de visitar em 2008) onde todas as paredes mostravam só fotos de sua irmã Cacilda e nenhuma dela.


Fiz uma pesquisa recentemente e constatei como a presença feminina é preponderante nos palcos brasileiros. Tendo como parâmetro aquilo que considero uma grande atriz (talento, presença, versatilidade, personalidade) levantei o nome daquelas nascidas no século XX. Cheguei a 71 nomes e provavelmente alguns outros devem ter me escapado. Usando o mesmo critério para os atores cheguei a pouco mais que uma dezena.

Nesse universo de 71 nomes, Cleyde Yáconis ocupa um lugar muito especial. 

Que se acendam muitos spots hoje para iluminar essa grande mulher.


14/11/2024




segunda-feira, 11 de novembro de 2024

ALEGRIA É A PROVA DOS NOVE

Faça uma visita â garçonnière de Oswald de Andrade na Rua Libero Badaró e aproveite para dar uma volta pelo centro de São Paulo dos anos 1920/1930, se tiver sorte você vai encontrar com Tarsila do Amaral, Mário de Andrade, Pagu e até São Pedro!

Duvida? Então vá ao SESC Pompeia e curta você mesmo a deliciosa revista antropofágica oferecida pelo Teatro Promíscuo (grupo de teatro com 30 anos comandado por Renato Borghi e Elcio Nogueira Seixas) e dirigida com muita verve por Johana Albuquerque e que cumpre o que promete no título do espetáculo.

Renato Borghi é uma entidade de nosso teatro; com seus 87 anos e mobilidade reduzida, ele tem garra e energia em cena de um garoto de 20 anos. Com voz e presença vigorosas Renato ilumina todo o espetáculo.

E o que dizer do incrível trio formado por Regina França, Fernanda D’Umbra e Elcio Nogueira Seixas? Elcio personifica Oswald e as meninas interpretam vários personagens.

A cada novo trabalho Elcio mostra novas facetas de seu talento e aqui dá mais um exemplo que está sempre crescendo. Sua interpretação de Oswald é empolgante.

Regina França tem versatilidade para interpretar, dançar e cantar em vários momentos e Fernanda D’Umbra é no mínimo exuberante com sua voz poderosa.

O grupo é acompanhado pelos músicos Pedro Birenbaum, Nath Calan e William Guedes.

Cenários (Simone Mina), luz (Wagner Pinto) e videografia (Vic Von Poser) emolduram com muita beleza essa gostosa e alegre leitura da vida e da obra de Oswald de Andrade que Johana dirige com mão de mestre. 

 O público deglute vorazmente o espetáculo e antropofagicamente o devolve ao grupo com calorosos aplausos.

O programa impresso é uma preciosidade com várias matérias sobre o assunto tratado na peça.

ALEGRIA É A PROVA DOS NOVE está em cartaz no SESC Pompeia até 08 de dezembro com sessões de quinta a sábado às 20h e domingo às 18h.

IMPERDÍVEL!

11/11/2024


quarta-feira, 6 de novembro de 2024

CARTAS DA PRISÃO

Foto de Rafael Salvador

Você deita na cama, fecha os olhos e inicia uma imaginação erótica; elege alguém que lhe é inacessível, mas que lhe desperta muito tesão. Da conversa inicial, passando pelos primeiros toques, o tirar a roupa e finalmente o ato sexual, tudo isso vai passando como um filme onde você se excita, mas sabe que está em plena segurança. QUEM um dia já não fez isso?

Aquilo que essas mulheres fazem ao entrar em contato com presidiários é muito parecido, pois tirando o risco de alguém descobrir as cartas, a situação é bastante segura para que elas tenham devaneios de afeto, nem sempre eróticos, vindos de um macho viril à distância. Em geral trata-se de mulheres negligenciadas, mal amadas e até maltratadas por aqueles que a cercam.

É por isso que ao tomar contato com as cartas enviadas por M, discordo de Álvaro Campos, heterônimo de Fernando Pessoa, quando ele afirma que todas as cartas de amor são ridículas.

As cartas apresentadas na peça podem ser patéticas, ingênuas, absurdas, mas são dotadas de muita humanidade e jamais ridículas.

 Essa ilusão de se relacionar com um presidiário, muito provavelmente tão carente de afeto quanto ela é o âmago de toda correspondência, revelando o instinto protetor materno dessas mulheres.

Nanna de Castro soube trabalhar dramaturgicamente as cartas que tinha em mãos lhes permeando com um texto consistente e humano dando a devida humanidade que essas mulheres merecem.

Chica Portugal defende com muita sobriedade e versatilidade as diversas mulheres que teriam escrito as cartas, além de dialogar com o público sobre o assunto. Mais um belo trabalho que vem se somar às grandes interpretações femininas do ano.

Bruno Kott dirige o espetáculo com sobriedade e elegância em perfeita sintonia com as intenções da autora e da atriz que também é responsável pela pesquisa do assunto.

O cenário de Kleber Montanheiro e a luz de Marisa Bentivegna completam a beleza desse necessário espetáculo que apresenta de maneira bastante original as questões da violência contra mulher e dos relacionamentos abusivos.

CARTAS DA PRISÃO está em cartaz no SESC Pompeia apenas até 15 de novembro, de terça a sexta às 20h30

 Excepcionalmente 15/11 (feriado) o espetáculo será às 17h30

NÃO DEIXE DE VER!

06/11/2024





sábado, 2 de novembro de 2024

CÃO VADIO


Tem gente que vem e quer voltar
Tem gente que vai, quer ficar
Tem gente que veio só olhar
Tem gente a sorrir e a chorar
E assim chegar e partir
São só dois lados da mesma viagem
O trem que chega é o mesmo trem da partida
A hora do encontro é também despedida
(Milton Nascimento/Fernando Brant)

- Tem certeza que a Suiça é pra lá? É tudo tão parecido.
- As fronteiras são uma invenção dos homens. A natureza está pouco ligando.
(cena final de “A grande Ilusão” de Jean Renoir)

     Duas de nossas melhores e mais queridas companhias de teatro adotaram a linguagem de cabaré para seus últimos trabalhos. Enquanto o mineiro Grupo Galpão se inspirou em Brecht e Kurt Weill, os curitibanos do Ave Lola buscaram o realismo mágico de Gárcia Márquez e também Shakespeare e Tchekhov. E ambas, mineira e paranaense, encheram olhos e corações de nós, paulistanos, com seus belíssimos espetáculos.

     Por meio de sucessivas cenas, as mãos sensíveis e delicadas da diretora Ana Rosa Tezza costuraram a dramaturgia de um espetáculo de rara beleza estética banhado pela “iluminada” luz criada por Beto Bruel e Rodrigo Ziolkowski.

     Um elenco coeso e talentoso atua em perfeita sintonia, o grupo sempre dando apoio e harmonia para aquele que está fazendo o seu solo, enquanto os músicos comentam a ação passo a passo.

     É impossível não destacar o brilho que Evandro Santiago dá à cena com a, não menos que excepcional, manipulação dos bonecos que constituem um espetáculo à parte, merecedora de aplausos em cena aberta. 


     Evandro e Helena Tezza eram jovenzinhos quando eu os conheci em um Festival de Curitiba em meados dos anos 2010, nesses dez anos evoluíram como artistas e hoje formam o primeiro time do Ave Lola.

     Ana Rosa rege elenco, cenografia, luz, música e todo o aparato cênico com mãos delicadas, mas bastante firmes oferecendo mais um dos ótimos trabalhos desta temporada teatral que chega ao fim no próximo mês

     Cão Vadio deve oferecer uma melhor visão da costura tecida pela diretora numa segunda visita.

     A razão do título fica clara para quem for assistir à peça.


     SERVIÇO:

- CÃO VADIO está em cartaz no Teatro Estudio até 1º de dezembro com sessões às quintas, sextas e aos sábados às 20h e aos domingos às 18h.

- Ingressos: Pague O Quanto Vale (distribuídos 1h antes na bilheteria do teatro por ordem de chegada).

- Sessões com libras e audiodescrição: 07 de novembro às 20h e 17 de novembro às 18h.

- Sessão extra: 21 de novembro às 14h30.

- Palestra sobre o processo de criação da Trupe Ave Lola com libras e audiodescrição: 17 de novembro às 20h.

 * Excepcionalmente no dia 28 de novembro (quinta-feira), não haverá espetáculo.

     CORRA PARA VER, não é sempre que temos um espetáculo com esses gabaritos técnico, artístico e HUMANO em nossos palcos.

02/11/2024