domingo, 12 de outubro de 2025

OLHOS NOS OLHOS

 

 

Um recital de Ana Lúcia Torre na companhia da poesia de Chico Buarque 

1.   Memórias de um espectador apaixonado.

No ano de 1965 eu estava no segundo ano de engenharia na FEI. Não gostava do curso e minimizava a frustração atuando no setor de cultura do Centro Acadêmico. Fiquei responsável de ir buscar os ingressos para “Morte e Vida Severina” que os alunos da FEI compravam.

Cada vez que eu ia levar o dinheiro e buscar os ingressos eu assistia à peça, encantado com aquela linda tradução cênica que Silnei Siqueira fez do poema de João Cabral de Mello Neto com música de um jovem que eu sempre via tocando na porta do “Bar Sem Nome” do Agostinho (quem viveu aquilo, sabe a que estou me referindo) na Rua Dr. Vila Nova, em frente às obras do que viria a ser o SESC Consolação, era um tal de Chico Buarque.

Entre tantas cenas que se tornaram antológicas havia uma que me tocava muito e que começava com uma pergunta do retirante Severino:

- “Muito bom dia, minha senhora, que nessa janela está.”

Nesse momento entrava em cena uma jovem atriz que com muita garra desfilava cantando sua profissão de a morte ajudar. Ao final da cena (“Só os roçados da morte cabem aqui cultivar”) aconteciam os primeiros aplausos calorosos em cena aberta que a montagem recebia. Foi o primeiro encontro de Ana Lúcia Torre com Chico Buarque. 

2.   Olhos nos Olhos 

Sessenta anos se passaram e hoje essa grande atriz que construiu uma brilhante carreira no teatro e na televisão reencontra Chico declamando com muita emoção as letras de suas canções.

Sérgio Módena elaborou uma bela dramaturgia costurando textos da vida de Ana Lúcia com as letras das músicas e ela o faz com seu costumeiro brilho quase sempre se dirigindo simpaticamente ao público. São os olhos nos olhos que o teatro é a única arte capaz de oferecer.

A direção de Módena é sóbria e totalmente focada na interpretação e na movimentação em cena da atriz no belo cenário criado por André Cortez e iluminado por Gabriele Souza. Ana Lúcia veste um belo figurino assinado por Fábio Namatame.

A atriz é acompanhada por Diógenes Junior ao piano.

O espetáculo todo é só emoção, mas o coração aperta mais nas interpretações que Ana faz de “Apesar de Você”, “Atrás da Porta”, “Meu Guri” e “Geni e o Zepelim”, nesses momentos se repetem os aplausos calorosos em cena aberta que ela recebeu há sessenta anos em “Morte e Vida Severina”.

Grande noite! 

OLHOS NOS OLHOS está em cartaz no Teatro Santos Augusta aos sábados (20h) e aos domingos (18h)

IMPERDÍVEL!


12/10/2025

sexta-feira, 10 de outubro de 2025

CARTA À RAINHA LOUCA

 

Que beleza! Quanto talento feminino reunido para realizar esse belo e vibrante espetáculo que denuncia as barbaridades cometidas com as mulheres desde sempre.

A origem de tudo está em uma carta escrita no século XVIII em Olinda por Isabel das Santas Virgens para a Rainha Maria I de Portugal denunciando as violências cometidas pelos homens. Fica a curiosidade de saber se a rainha leu essa carta e muito menos se ela a respondeu.

De posse desta carta Maria Valéria Rezende (1942) - nascida em Santos, mas vive no Nordeste e celebrada autora do romance “O Voo da Guará Vermelha” - escreve o romance “Carta à Rainha Louca” que tem a carta como base, mas é recheado com uma vibrante ficção criada por ela.

E mais mulheres entram em cena: Lilian de Lima conhece a autora e se interessa em fazer um espetáculo a partir do livro; Bárbara Esmenia faz a adaptação teatral e Patrícia Gifford é convidada para dirigir o espetáculo tendo Fernanda Maia na direção musical e nos teclados. Lilian Lima se encarrega do papel principal e tem ao seu lado um coral cênico formado por treze intérpretes e mais duas musicistas. Um totas de 17 pessoas está em cena interpretando e cantando a saga de Isabel.

[Isabel>Maria Valéria>Lilian>Bárbara>Patrícia>Fernanda>Elenco]

Realmente um time de primeira grandeza, sem contar o grande número de mulheres presentes na ficha técnica.

Patrícia Gifford orquestra a presença do numeroso elenco preenchendo o palco de maneira harmoniosa.

Lilian Lima tem garra e energia para mostrar a violência contra a Isabel daquela época e contra as mulheres até os dias de hoje; tem dicção e emissão perfeitas (como é bom entender TUDO aquilo que um artista diz em cena!!) e canta com uma voz belíssima. Interpretação digna de elogios e de prêmios.

Todo o elenco também merece aplausos pela verdade e espontaneidade em cena.

Fernanda Maia brilha nos teclados e na direção musical, como sempre o faz.

Figurinos solares de Carol Gracindo e Thaís Dias são dignos de nota.

        Apesar dos graves problemas tratados, Patrícia dá um ar de leveza ao espetáculo com as canções entoadas pelo coro, bela luminosidade da cena e pela interpretação soberba de Lilian de Lima.

        CARTA À RAINHA LOUCA está em cartaz no SESC Bom Retiro só até o próximo domingo com sessões no sábado às 20h e  no domingo as 18h.

        NÃO PERCA!!

        10/10/2025

quinta-feira, 9 de outubro de 2025

TEU SONHO NÃO ACABOU

 

Apolo devia estar muito iluminado na década de 1940 e com um olho na música do Brasil para ter feito nascer nestas terras Gilberto Gil (1942), Elis Regina (1945), Chico Buarque (1944), Caetano Veloso (1942), Maria Bethânia (1946), João Bosco (1946), Milton Nascimento (1942), Edu Lobo (1943), Leny Andrade (1943), Gal Costa (1945), Gonzaguinha (1945), Ivan Lins (1945) e Egberto Gismonti (1947).

Todos reverenciados pela mídia e muito lembrados pelo público, mas tem um artista tão valoroso quanto eles que a mídia parece esquecer e muito jovem não sabe que ele existiu.

Esse artista que a direita perseguiu censurando quase uma centena de suas canções e proibindo muitas de suas apresentações e  que a esquerda torceu o nariz alegando que sua música era alienada, hoje estaria fazendo oitenta anos, infelizmente ele partiu muito antes em 1996 com apenas 50 anos.

Taiguara Chalar da Silva nasceu em 9 de outubro de 1945 em Montevideu, filho do bandoneonista brasileiro Ubirajara Silva e da cantora de tangos uruguaia Olga Chalar.

O nome TAIGUARA em tupi guarani significa LIVRE e esse artista honrou esse nome com sua maravilhosa obra cheia de poesia, mas com o dedo apontado para as truculências da ditadura militar. Ouso dizer que ele foi o artista que na época melhor soube dosar o romantismo com a denúncia política. 

“Essa pequena agora eu sei porque é que ela me amarra
Ela tem medo do berro dos acordes da guitarra
Ela pretende fechar a minha porta com seus grilos
Ela não sabe que versos ninguém pode destruí-los
 

Essa pequena eu quero trabalhar e ela não deixa
Essa pequena eu quero dar amor e ela se queixa
Ela se engana depois vem censurar minha conduta
Essa pequena não passa de uma vã...
Não tem a mente sã essa pequena”
 

Essa música que faz parte do disco “Fotografias” de 1973, é só

um exemplo da dualidade das letras de Taiguara. Há alguma dúvida quem é essa pequena?

        No álbum “Ymira, Tyra, Ipy”, obra prima de 1976 que conta com a participação de Wagner Tiso e Hermeto Paschoal, o artista é mais direto na canção “Situação”:

        Não, não adianta não

         A situação já está fora das suas mãos

         Como é que você vai me dar

         O que já e meu

         Como é que você vai criar

         O que já nasceu “

         E fecha o disco com os versos de “Outra Cena”:

         “O santo a seca o sertão

         O filho morto nas mãos

Família fome facão

A grana o gado o ladrão

O pau o podre o país

Amado o medo a matriz

Só não sofreu

Quem não viu

Não entendeu

Quem não quis” 

NÃO ENTENDEU, QUEM NÃO QUIS! Claro que os milicos entenderam e proibiram o disco logo depois de ser lançado.

Mas o Taiguara romântico está presente em tantas outras canções maravilhosas como “O Universo do Teu Corpo” (uma das primeiras músicas a insinuar uma relação gay: “Que meu porto, meu destino, meu abrigo São teu corpo amante, amigo em minhas mãos”), “Hoje”, “Teu Sonho Não Acabou”, “Mudou” e tantas outras que não caberiam nesta matéria.

Está mais que na hora de resgatar a memória desse importante artista que clamou: 

“Eu não queria a juventude assim perdida” 

E foi porta voz do grito dos gaúchos Arthur Verocai e Geraldo Flach na pouco conhecida (e linda!!) “Um Novo Rumo” (1968): 

“Vou pra luta, agora eu vou! Não paro não” 

Enquanto houver quem ouve e canta suas canções, pode ter certeza Taiguara, que TEU SONHO NÂO ACABOU!

VIVA TAIGUARA NO DIA DOS SEUS OITENTA ANOS!!

9/10/2025

 

 

 

 

 

 

segunda-feira, 6 de outubro de 2025

DUAS MÁSCARAS NUAS

 


UMA NOITE DE BOM TEATRO

        Faz muito bem ao espectador assistir a um bom texto, bem dirigido e interpretado por um elenco de notáveis. Assistir a um espetáculo do “Grupo Tapa” é certeza de ter uma tríade com essas características.

        “Duas Máscaras Nuas” é a reunião de dois textos curtos de Luigi Pirandello (1867-1936): “Cecé” (1910) é uma comédia dos primeiros anos do autor como dramaturgo e “O Homem Com A Flor na Boca” (1922) é um drama escrito logo após de “Seis Personagens à Procura de Um Autor”, marco na carreira de Pirandello.

        “Cecé” mostra as peripécias de um aproveitador que aplica golpes em quem está por perto. O Tapa fez uma versão on line desta peça na época da pandemia (novembro de 2020), mas a versão ao vivo ganha em ritmo, ironia e humor com ótimos desempenhos de André Garolli, Norival Rizzo e Camila Czerkes. O sugestivo cenário rodeado de espelhos parece transmitir a relatividade da verdade, tão cara ao dramaturgo italiano.

        Após um breve intervalo é a vez de “O Homem Com a Flor na Boca”, em um cenário limpo apenas com duas mesas e duas cadeiras onde acontece o encontro do homem do título (Norival Rizo) e um passageiro que aguarda a chegada do seu trem (André Garolli).

        Eu tenho um bauzinho onde guardo com muito cuidado a memória de muitos momentos mágicos e humanos que o teatro me oferece há 60 anos. A belíssima cena em que a personagem de Norival descreve como uma vendedora faz um embrulho de presente foi uma das coisas mais incríveis e belas a que presenciei nesta longa trajetória como espectador e com certeza ela já está guardada no meu bauzinho. Só por esta cena, Norival deveria receber prêmios de melhor ator do ano.



      O passageiro (Garolli) é um ouvinte nem sempre atento, mas também incrédulo, com a conversa do homem e ver as suas reações em cena são um espetáculo a parte.

        Ao final, comentei com Garolli que para ele deve ser um privilégio assistir a cada apresentação a performance de Rizo. É uma verdadeira aula de interpretação!

        As duas peças são dirigidas por Eduardo Tolentino de Araujo com a elegância e o rigor que lhe são habituais.

        De lambuja, Tolentino faz uma muito bem-vinda mini palestra no início sobre a vida e a obra de Pirandello, situando e comentando as duas peças apresentadas.

        Grande noite de teatro ocorrida no aconchegante Galpão do Tapa, sede da companhia situada na Rua Lopes Chaves, 84 na Barra Funda.

        DUAS MÁSCARAS NUAS fica em cartaz até o final da próxima semana com sessões sábado e domingo à 20h.

 

        6/10/2025

domingo, 5 de outubro de 2025

FILOCTETES EM LEMNOS

 

Ontem assisti à performance de Vinicius Torres Machado no TUSP. Experiência rara, e acredito única, na trajetória de um espectador bastante calejado. Sai do teatro confuso e muito tocado por aquela figura nua, muda e isolada do mundo.

Ao chegar em casa comecei a ler o livreto distribuído ao fim do espetáculo que é, segundo Vinicius, “a realidade da matéria viva que originou o espetáculo”. Li a metade do volume e já bastante perturbado fui dormir com medo de perder o sono diante da descrição de tantas dores físicas e morais. Na manhã deste domingo ensolarado terminei de ler e compreendo melhor aquilo a que assisti na noite de ontem. Dilacerante!

O espetáculo remete ao mito de Filoctetes que ficou abandonado pelos gregos   na ilha de Lemnos, após ser mordido por uma serpente e suas feridas exalarem mau cheiro. Filoctetes passou nove anos isolado sofrendo muito com suas dores terríveis e sua solidão. A experiência de Vinicius com as dores terríveis que a doença lhe trouxe e a solidão pelos quartos de hospital pelos quais passou fez com que ele se aproximasse do mito grego e desenvolvesse esse trabalho radical sem palavras e com movimentos mínimos e até infantis quando tenta se comunicar com a escuridão que tem pela frente e é muito doído para o espectador fazer parte dessa escuridão.

Depois de alguns anos Filoctetes foi resgatado pelos gregos para lutar na guerra de Troia e Vinicius “resgatou-se” para a vida e hoje tem condições e muita coragem de apresentar esse trabalho ao público. De alguma maneira não deixam de serem finais felizes.

O espetáculo é esteticamente muito bonito com iluminação precisa e deslumbrante assinada por Dimitri Luppi e Wagner Antônio.

Depois de uma hora, Vinicius cobre seu corpo e senta-se na cadeira em que iniciou o trabalho. As meninas da produção abrem as portas do teatro dando sinais que o espetáculo terminou, mas o público demora a abandonar o espaço e mesmo lá fora, ainda sob o impacto daquilo que presenciou, fica vagando enquanto recebe o livreto que complementa essa obra tão radical e tão importante para compreendermos nossos corpos e nossas almas.

Esse precioso espetáculo fica em cartaz só até hoje (5/10) no TUSP Maria Antonia.

CORRA!! 

5/10/2025

sexta-feira, 3 de outubro de 2025

ADULTO

 

Foto de Julieta Bacchin

“Então foram felizes para sempre...” 

Fran Ferraretto é uma bela mulher de pouco mais de 30 anos que ousa dizer que na maioria das vezes esse final está longe de ser feliz, se é que há um final.

Para tanto monta a dramaturgia da peça “Adulto” com dois casais: um deles bastante disfuncional (João e Sara) e o outro (Vitor e Paula) que mantém sua harmonia (e felicidade?) quando cada um preserva sua individualidade e sua liberdade. Esses dois casais se conhecem e se encontram em reuniões barulhentas e nem sempre amigáveis. As mulheres parecem se dar bem, mas há ciúmes e inveja de João em relação ao sucesso profissional de Vitor. Está montada a estrutura para Fran mostrar a emancipação da mulher.

Em recurso dramatúrgico não original, mas muito interessante, a peça reúne quatro intérpretes para fazer uma leitura dessa peça que fala sobre os dois casais. A apresentação transcorre entre a leitura da peça e cenas da própria peça provocando um bem-vindo dinamismo à montagem.

O texto é nervoso e a direção de Lavínia Pannunzio reforça ainda mais esse nervosismo imprimindo muita velocidade, principalmente nas cenas de conjunto onde o elenco grita, corre para lá e para cá e muitas vezes fala simultaneamente, além de estar acompanhado pelo barulho ensurdecedor de uma máquina de lavar roupa.

Iuri Saraiva representa João, o frustrado marido de Sara, oscilando entre o sentimento de ser traído por ela e a revolta com as atitudes liberais da mulher.

Sidney Santiago Kuanza empresta seu talento para interpretar Vitor, o amigo melhor sucedido de João de quem este tem inveja.

Jennifer Souza tem seus bons momentos como a emancipada Paula prejudicados pela voz muito estridente que, por vezes, dificulta a compreensão daquilo que ela está falando.

Fran Ferraretto brilha como a líder do grupo que faz a leitura e a personagem de Sara que depois de seu caso/traição no Uruguai enxerga os relacionamentos com outros olhos.

De um modo geral as interpretações são muito boas, apesar de gritadas demais. Alguns momentos de silêncio soaram como um bálsamo para este espectador.

A montagem conta com o cenário de Mira Andrade (uma grande mesa e cadeiras com várias funções), desenho de luz de Gabriele Souza, figurinos de Anne Cerutti e os terríveis ruídos da máquina de lavar roupa (quase uma personagem!) na trilha sonora assinada por Rafael Thomazini.

Pela importância do tema tratado é importante prestigiar a peça de Fran Ferraretto. 

ADULTO está em cartaz no SESC Ipiranga até 12/10 às sextas e sábados às 20h e aos domingos às 18h 

3/10/2025