quarta-feira, 15 de outubro de 2014

A REPRESENTAÇÃO CHILENA NO MIRADA 2014


        
         Na segunda metade do século 20 praticamente todos os países da América Latina padeceram com ditaduras militares e as feridas dessas experiências estão longe da cicatrização. Perda de direitos civis, torturas, censura e desaparecimento de presos políticos foram fatos constantes nesses tempos de triste memória. Qualquer ditadura é nefasta, mas algumas foram mais violentas e/ou mais longevas. A do Brasil durou de 1964 a 1985, a da Argentina foi curta (1966-1973), mas uma das mais violentas e a do Chile, liderada pelo general Pinochet, conseguiu reunir as duas coisas: truculência e longevidade (1973-1990). Depois desses anos de fúria e de silêncio, o país se redemocratizou, seus cidadãos altamente politizados já elegeram presidentes de esquerda e de direita, mas as marcas deixadas pelas botas de Pinochet ainda podem ser notadas na sociedade chilena e por consequência na arte produzida por ela.
         O Chile foi o país homenageado na terceira edição do MIRADA (Festival Ibero-Americano de Artes Cênicas de Santos promovido pelo Sesc). Os sete espetáculos apresentados primaram pelo alto nível profissional, apresentando formas e conteúdos bastante diversos, todos eles, porém, de uma maneira ou de outra denunciando (ou refletindo sobre) a luta pelo poder, o abuso de autoridade e o uso da violência pelos poderosos, fatos corriqueiros nos 17 anos em que o país viveu sob o jugo dos militares e que podem ressurgir a qualquer momento. Mais do que nunca, relembrar é preciso, conforme o fazem os trabalhos apresentados no MIRADA e que são resenhados a seguir.
 
A Imaginação do Futuro - Foto de La Resentida

         A peça que abriu a mostra santista foi A Imaginação do Futuro da Compañia La Resentida. Espetáculo anárquico e politicamente incorreto que procura retratar a situação política do Chile atual por meio de uma visão irreverente e pouco abonadora de Salvador Allende e de seus últimos dias na presidência do Chile. A visão que o grupo tem do governo socialista de Allende é bastante discutível, porém não se pode negar que o espetáculo tem muita energia e conta com elenco jovem e talentoso.
 
O Jardim das Cerejeiras - Foto de Dana Hosova

         Em outro extremo, seguindo a linha mais tradicional do chamado teatro “bem feito”, o grupo Teatro Camino apresentou O Jardim das Cerejeiras, um Tchekhov na medida certa: boas interpretações para as já clássicas personagens da peça, cenário simples e sugestivo, iluminação dando ao ambiente cor sépia e direção delicada que privilegia as palavras do belo texto do autor russo. A peça é um manifesto contra o uso do poder econômico, no caso representado pelo personagem Lopakhin.
 
Otelo - Foto de Rafael Arenas

         Otelo da Compañia Viajeinmóvil é ótimo exemplo de como realizar adaptação inteligente de um clássico: dois atores/manipuladores representam o quarteto principal da tragédia de Shakespeare: Otelo e Desdemona (bonecos), Iago e Emília (atores). A manipulação dos bonecos é precisa e em certos momentos o corpo do boneco se confunde com o do ator criando efeito bastante interessante. Jaime Lorca e Teresita Iacobelli são atores com pleno domínio de seu ofício alterando com muita flexibilidade as entonações de cada personagem a que dão voz. Apenas uma cama, alguns objetos e os bonecos com as cabeças de Otelo, Desdemona e Cassius são suficientes para os dois atores nos contarem a triste história do mouro de Veneza, sob o ponto de vista do maquiavélico manipulador Iago.
 
O Cavaleiro da Morte - Foto de José Cetra
 
O Homem Vindo de Nenhuma Parte - Foto de Pablo Sepulveda

         O teatro de rua é bastante difundido no Chile e se fez representar com dois espetáculos no MIRADA: O Cavaleiro da Morte do grupo La Pato Gallina usa a estética dos filmes mudos para contar a saga do herói nacional Manuel Rodriguez que lutou pela liberdade do Chile. Visualmente muito bonita a peça apresenta os atores com máscaras expressionistas de cor preta que contrastam com o cenário branco, a música que comenta a ação é tocada ao vivo por uma banda de rock. É importante notar que o espetáculo está em repertório há 14 anos com o elenco original. O Homem Vindo de Nenhuma Parte do grupo La Gran Reyneta se vale de estética bastante distinta usando enormes aparatos técnicos e humanos para movimentar uma nave que vira barco, uma mão gigantesca que persegue o herói, tablados que podem ser ora um cemitério ora uma ilha paradisíaca, efeitos de explosão e de bombas. Em oposição a essa tecnologia pesada a trama é bastante simples contando as viagens de um homem no tempo e no espaço. Ambos os espetáculos são exemplos de teatro de rua bem produzido e que atinge o público a que se destina.

A Reunião - Foto de Jorge Becker

         Além de O Jardim das Cerejeiras, o teatro essencialmente de palavras foi muito bem representado pelo mais radical A Reunião, trazido pelo grupo Teatro em El Blanco (do qual São Paulo já teve a oportunidade de receber Diciembre e o emblemático Neva). Estreia de Trinidad González como autora e diretora, A Reunião reafirma o grande talento interpretativo da atriz como a Rainha Isabel da Espanha num embate com Cristovão Colombo que foi aprisionado por abuso de poder. Diálogos ágeis e cortantes num trabalho com pouca movimentação cênica e cenário mínimo, onde a presença do ator faz o espetáculo. Trinidad revela todo seu potencial dramático tanto nas falas como nos silêncios e é bem coadjuvada por Nicolas Pavez como Colombo.
 
Castigo - Foto de Valentino Saldivar

         Castigo do grupo Teatro La Memoria é espetáculo singular. Aqui a palavra é mínima e o gestual também. O pouco que acontece o faz de maneira muito lenta como o menino olhando para o espelho, a empregada preparando a mesa para o jantar e depois servindo a sopa, a reza antes da refeição, a criada cantando enquanto a família come. Após o castigo que o menino recebe do pai, o realismo é bruscamente quebrado por meio de uma tempestade de neve que invade a casa e aniquila quase toda a família (o menino se safa entrando em cena após o desastre com ar de vitória e de vingança). Baseado em texto autobiográfico de August Strindberg o espetáculo é muito bonito e tem feições da Europa nórdica lembrando os quadros do pintor holandês Vermeer. 60 minutos do mais puro teatro.                                   
         Ao meu modo de ver, Castigo e A Reunião foram os melhores espetáculos não só da representação chilena, mas de todo o MIRADA.

         Como se vê a representação chilena primou pela diversidade e pela alta qualidade sempre lembrando que a liberdade de expressão é um direito adquirido com muita luta e que deve ser preservada a qualquer custo.   Outra prova da efervescência teatral chilena é a realização em janeiro de cada ano do Santiago a Mil, um dos mais importantes festivais internacionais de teatro realizados na América Latina.
 
 

 

 

 

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