quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

CARANGUEJO OVERDRIVE




        Era muito comum nos turbulentos anos 1960 ver um estudante mesmo que medianamente engajado na luta para enfrentar o regime militar que não carregasse em sua mochila os livros Geografia da Fome e Geopolítica da Fome do autor pernambucano Josué de Castro (1908-1973). O autor era cultuado nas universidades e sempre citado quando o assunto era a fome nos países subdesenvolvidos, sua tese era que a questão da fome origina-se na má distribuição da renda e das mercadorias obtidas com essa renda e era forte defensor da reforma agrária. Há uma célebre frase dele que diz “Metade da humanidade não come e a outra metade não dorme, com medo da que não come”. Ciosos defensores dessa outra metade, os militares perseguiram e conseguiram banir Josué de Castro da memória do brasileiro. Muito pouca gente conhece o legado desse médico, cientista político e ativista no combate à fome. Ele também escreveu um romance intitulado Homens e Caranguejos.
        Eis que nos chega do Rio de Janeiro pelo grupo Aquela Cia. de Teatro, um dos espetáculos mais engajados dos últimos anos que foi buscar inspiração na obra de Josué de Castro, tendo o grande mérito de trazer de volta o pensamento do mesmo para a reflexão dos espectadores à luz da realidade atual. Transferindo a ação dos mangues pernambucanos para aqueles do Rio no século 19, o texto de Pedro Kosovski fala de um homem que caçou caranguejos na juventude, lutou na Guerra do Paraguai e ao voltar traumatizado pelos efeitos da guerra encontra uma cidade completamente mudada e onde o mangue, sua fonte de sobrevivência, foi aterrado. Após vários percalços este homem faminto metaforicamente transforma-se em caranguejo passando de caçador a caçado.


        A encenação de Marco André Nunes, tendo como base estética o movimento manguebeat de Chico Science, é envolvente. Os atores (todos excelentes) desdobram-se na narração e na interpretação de Cosme, o protagonista. A peça inicia com um manifesto dito por Alex Nader enquanto Matheus Macena (grande presença cênica e dono de voz marcante) debate-se numa plataforma de areia que simboliza a lama do mangue. A ação evolui e tem seu ápice no momento em que Fellipe Marques desnuda-se cobrindo o corpo de lama e transformando-se em caranguejo. Durante a sua metamorfose ocorre em paralelo a cena antológica em que uma prostituta paraguaia do mangue (grande momento de Carolina Virguez a quem vimos há pouco em Guerrilheiras) conta em alta velocidade para o depauperado e esfomeado Cosme a história da política brasileira. Hilariante e cruel.
        A forte e precisa trilha musical é executada ao vivo por três músicos com a direção musical de um deles (Felipe Storino).
        Na noite da estreia (16/02) a peça e os atores foram ovacionados longamente por um público bastante emocionado com a pujança do que acabou de ver.
        CARANGUEJO OVERDRIVE fica em cartaz no Sesc Pinheiros de terça a quinta feira às 21h somente até 10/03. SÃO PAULO PRECISA DESCOBRIR ESTE ESPETÁCULO QUE JÁ PODE SER INCLUÍDO ENTRE OS MELHORES DO ANO.


         

17/02/2016

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