As recentes manifestações de ódio em
relação aos nordestinos que têm infestado as redes sociais escancaram o
preconceito que a sociedade brasileira insiste em alardear que não existe.
Preconceitos, quer sejam de raça, de sexo ou de classe sempre temperados com
ódio e intolerância, são expostos diariamente e sempre nos perguntamos quem são
os monstros que estão por detrás dessas manifestações. Serão asquerosos ao
olhar? Tipos mal encarados?
Seria fácil evitá-los se assim fosse. O
perigo é que eles têm a cara de Jane Jones, uma das personagens mais odiosas já
surgidas em nossos palcos, que na aparência se assemelha àquela senhorinha
simpática que mora ao lado de sua casa.
Jane Jones e seu hipócrita, abestalhado
e também preconceituoso marido James Jones formam um casal burguês e são os
pais de John Jones e Jenny Jones. Os Jones moram “numa das maiores cidades do
nosso país” e se auto proclamam muito liberais. Papai Jones nada mais é que um
vendedor de armas que se aproveita de países em guerra e assassinos para
desovar seus produtos. Tudo vai bem até que a caçula Jones traz para casa seu
novo namorado: um negro muçulmano chamado Kwesi. Esse é o início da trama de Preto no Branco (Mirror Teeth, no original), peça do jovem (34 anos) dramaturgo
britânico Nick Gill, dirigida por Zé Henrique de Paula, em cartaz no Sesc Bom
Retiro.
Ri-se muito no início do espetáculo. Os
passinhos de entrada em cena de Marco Antônio Pâmio ao voltar do trabalho são
antológicos e divertidíssimos. Seu diálogo com Mamãe Jones é digno do melhor
Ionesco e Clara Carvalho está impagável como a detestável Jane. À medida que a
peça avança o riso do público vai se tornando mais fraco e mais nervoso, uma
vez que vamos colocando em cheque nossos próprios valores e preconceitos. A
segunda parte da peça, quando eles se mudam para “uma das maiores cidades do
Oriente Médio” é insuportavelmente divertida. Preto no Branco é um mais
que necessário soco no estômago.
Zé Henrique de Paula ambienta essa história
num cenário asséptico, “embrulhado para presente, com papel colorido e um laço
de fita”, para usar as palavras de Clara Carvalho contidas no programa e
cercado de seu grupo do Núcleo Experimental, realiza um dos espetáculos mais
urgentes da atual temporada teatral.
Muito já se falou do talento do par
central, mas nunca é demais comentar que Clara Cavalho realiza uma de suas
melhores composições e Pâmio está não menos que brilhante, ambos vivendo
personagens muito mais velhas do que eles. Eles são muito bem secundados pelos
jovens atores que fazem os filhos e o namorado.
Preto
no Branco é versão amarga, cruel e politicamente incorreta de uma antiga
comédia romântica norte americana intitulada Adivinhe Quem Vem Para Jantar; nesta havia happy end, Preto no Branco
não deixa pedra sobre pedra e saímos do
teatro com aquele sorriso amarelo que denuncia a questão: “O que é que eu tenho
a ver com isso?”.
Preto no Branco cumpre temporada no
Sesc Bom Retiro às sextas (20h), sábados (19h) e domingos (18h) até 30 de
novembro, transferindo-se depois para o Teatro do Núcleo Experimental. NÂO
DEIXE DE VER.
Fotos de Ronaldo Gutierrez
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