sábado, 19 de outubro de 2024

PRONTUÁRIO 12.528

 

 

Não tenho dúvida que estamos diante de um dos melhores espetáculos do ano. Esteticamente criativo e belo na forma e contundente e muito necessário no conteúdo.

Nunca é demais relembrar as consequências da colonização do Brasil pelos portugueses e quão nociva, perversa e dolorosa foi a famigerada ditadura civil militar que perseguiu, torturou e matou ou desapareceu com aqueles que lutaram por liberdade e defesa dos direitos humanos.

A dramaturgia de Cesar Ribeiro costura de forma brilhante textos de sua autoria com textos que vão desde Pero Vaz de Caminha até Luis Fernando Veríssimo. O resultado é uma dramaturgia consistente e poderosa que mantém o espectador grudado na poltrona (diga-se de passagem, desconfortável) do Núcleo Experimental.

Com nítida e saudável influência do teatro do absurdo de Samuel Beckett e da história em quadrinhos, Ribeiro abre o espetáculo com um texto magnífico de Veríssimo onde se comenta que é fácil tirar uma vida, o impossível é livrar-se do corpo/lixo. Interpretado por Clara Carvalho o texto é o primeiro soco dado no estômago do espectador.

Seguem-se cenas memoráveis como aquela com os dois pacientes (Mariana Muniz e Pedro Conrado ótimos) em um hospital (esta cena é repetida com poucas  variações, relembrando a estrutura de Esperando Godot); o caso do João, empregado de uma empresa, que a medida que o tempo passa recebe como estímulo uma redução no seu salário até ficar “dezassalariado” ,Clara Carvalho puxa João acorrentado (Hélio Cícero) numa clara referência à cena de Pozzo e Lucky em Esperando Godot; a cena com caráter épico de Pero Vaz de Caminha é interpretada  por Helio Cícero e para completar a porrada, a peça termina com depoimentos de um advogado defensor de presos políticos (Helio),uma jovem que foi humilhantemente torturada (Clara, comovente) e de Dilma Roussef (Mariana). Esta última cena tem como pano de fundo cabeças de vítimas da ditadura.

No exíguo espaço cênico do Núcleo Experimental, J.C. Serroni criou um cenário poderoso com chão de areia e que ao simples mover de uma cortina se transforma numa praia do descobrimento ou nas tumbas com as cabeças dos mortos. A belíssima luz de Domingos Quintiliano enriquece a atmosfera do espetáculo, assim como os figurinos de Telumi Hellen e o surpreendente visagismo de Louise Helene. Para completar o quadro é importante citar a excelente trilha sonora criada por Cesar Ribeiro que ora reforça e ora critica a ação.

Cesar Ribeiro soube harmonizar tantos bons elementos (dramaturgia, cenário, iluminação, figurinos, visagismo, trilha sonora e um quarteto de intérpretes poderosos) criando um espetáculo que apesar de ser doloroso, o espectador sai com a alma lavada e energizado, com vontade de mudar o estado das coisas.

Foto de Dan Pimenta

O título da peça já é carregado de ironia e indignação, pois se refere ao número da lei que instituiu a a Comissão Nacional da Verdade que, ao que tudo indica, terminou em pizza.

Ah, Brasil! De tanta beleza e de tanta pobreza!

VOCÊ que sabe das coisas vai novamente se indignar com o que é apresentado e VOCÊ que não acredita que tudo aquilo aconteceu talvez vá mudar de ideia assistindo a esse pungente espetáculo.

ABSOLUTAMENTE IMPERDÍVEL. 

Cartaz do Teatro do Núcleo Experimental até 25 de novembro às sextas, sábados e segun das às 20h e aos domingos às 19h. 

19/10/2024

 

 

 

Um comentário:

  1. Cetra
    Que olhar sensível para o espetáculo! E que comentário: tão importante quanto a peça!

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