Estamos diante de um
autêntico musical brasileiro que por meio de muita alegria e muito deboche vai
fundo nas raízes dos nossos problemas político-culturais. A essência das
revistas tão voga no Brasil nas primeiras décadas do século XX e desaparecidas
a partir do fim dos anos 1960, por ordem e graça da truculenta censura imposta
pela ditadura civil-militar, está de volta nessa preciosa encenação de Kleber
Montanheiro para a Cia. da Revista que neste ano completa 25 anos e
comemora uma trajetória digna e muito coerente com seus objetivos.
1978, 2013 e 2022 é o
caminho percorrido para se chegar a esse excitante musical: a ação do
excepcional filme (2013) de Hilton Lacerda se passa em 1978, auge da ditadura,
onde um grupo teatral sediado em Olinda usa e abusa do deboche para, a seu
modo, contestar o status quo. Montanheiro adaptou de forma muito fiel o
roteiro do filme para o palco, permeando a ação com as canções do grupo As
Baías, sendo difícil acreditar que aquelas músicas e letras não tenham
sido feitas para o espetáculo, tal é a maneira como elas dialogam com a trama.
As exceções são a canção Tatuagem, escrita especialmente para a peça por
Assucena e a Polca do Cu, presente no filme e que jamais poderia ser
substituída por outra música, tal seu poder de deboche e comunicação com o
público. A peça estreou em abril de 2022.
A encenação de Kleber
Montanheiro é extremamente criativa nos mínimos detalhes a começar pela sala de
espera do espaço que já introduz o espectador no clima da peça e exibe fotos
que provém do projeto #Feito Tatuagem realizado por Louise Helène
(visagismo) e Sérgio Santoian (fotografia). A legenda das fotos reproduz nomes
de pessoas mortas durante a ditadura.
Adentra-se o espaço
de representação e depara-se com uma interessante disposição: mesinhas, com
duas cadeiras onde privilegiados espectadores poderão sentar, circundam o local
da ação e atrás ficam as arquibancadas.
O espaço cênico vai
abrigar o cabaré Chão de Estrelas onde se passa a maior parte da trama,
mas criativamente e com poucos recursos pode se transformar na casa do interior
da família do protagonista Arlindo/Fininha, no salão da comunidade onde o grupo
vai morar e no quarto do protagonista Clécio.
Todo esse sugestivo aparato cênico leva a assinatura de Kleber Montanheiro que também é responsável pelos esfuziantes e coloridos figurinos. As criativas luminárias feitas com material reciclável são de Gabriele Souza, responsável pela iluminação do espetáculo.
Sobre a excelente
trilha sonora criada por As Baías já comentei acima, mas cabe destacar
os arranjos e a potente direção musical de Marco França presente nas
interpretações da banda (excelente) e do grupo de atrizes cantoras/atores
cantores.
O elenco de Tatuagem
esbanja juventude, alegria e energia (talvez seja por isso que, em certos
momentos, a peça me remeteu à montagem de Hair realizada pelo saudoso
Ademar Guerra em 1969) e essas características são transmitidas para o público
que vibra e participa do espetáculo, aplaudindo com muito entusiasmo ao final e
demorando para se retirar do local querendo usufruir ao máximo daquele ambiente
tão generoso e acolhedor.
Do jovem, harmonioso
e promissor elenco cabe destacar Cleomácio Inácio (conduz o espetáculo como Clécio),
Mateus Vicente (muito sensível como Fininha), Natália Quadros (Soninha e
Ceminha, ambas com muita energia), André Torquato (uma vigorosa Paulete), Bia
Sabiá (Deusa) e Romário Oliveira (Marquinhos com hilárias entradas e saídas de
cena). Talvez por representarem personagens diferentes do grupo principal, as
interpretações de Joubert (GuRezê), Tia Zózima e Censor (ambas por Zé Gui
Bueno) mereceriam maior lapidação para se tornarem mais críveis.
Em temporada teatral
tão rica, não só em quantidade, mas, principalmente, em qualidade, Tatuagem
se impõe como um excelente espetáculo devendo constar de todas as listas que irão
destacar os melhores do ano.
Que venham os prêmios
porque ótimos espetáculos para abocanhá-los já existem e Tatuagem, com certeza,
é um deles!
TATUAGEM está em
cartaz na Cia. da Revista até 05/06 de quinta a sábado às 21h e aos domingos às
19h. A sessão de 6ª feira é gratuita.
Com o sucesso que vem
obtendo é muito provável que a peça estenda a temporada. LONGA VIDA À
TATUAGEM!!
06/05/2022
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