A encenação de José Fernando Peixoto de Azevedo para esta que talvez seja a peça mais politicamente engajada do dramaturgo norueguês Henrik Ibsen (1828-1906) impõe-se como um dos melhores espetáculos da presente e rica temporada teatral paulistana.
1. Um pouco de história.
Escrita em 1882, logo após o sucesso e
o escândalo de Casa de Bonecas e Espectros, Um Inimigo
do Povo foi montada na Rússia por Stanislavski em 1900, mas só foi alcançar
maior notoriedade mundial em 1966 quando Arthur Miller a montou em Saarbrücken
na Alemanha (o belo programa da peça em forma do jornal A Voz do Povo
traz uma interessante matéria de Otto Maria Carpeaux sobre essa montagem).
No Brasil cabe lembrar da memorável montagem
de Fernando Torres em 1969 no Theatro São Pedro com Claudio Corrêa e
Castro no papel do Dr. Stockmann, Beatriz Segall como sua esposa e Graça Mello
como o prefeito.
“A peça retrata o conflito existente entre o individual e o coletivo, mostrando de que forma a população de uma pequena cidade-balneário da Noruega transforma o médico local (Dr. Stockmann) de cidadão honrado em um inimigo do povo por conta de suas convicções a respeito da qualidade das águas que serviam os banhos públicos, fonte de riqueza para toda a cidade.” (sinopse extraída da Wikipedia).
2. A visão de Azevedo
O encenador volta a usar de maneira brilhante os recursos de
vídeo utilizados em As Mãos Sujas (2019). Um cameraman (participação
digna de aplausos de André Voulgaris, pela precisão em captar os melhores
ângulos da cena) registra as ações que são projetadas em um telão em belo
branco e preto. Algumas dessas ações acontecem fora de cena, como aquela em que
no telão aparecem a esposa e a filha de Stockmann aflitas escutando o embate
entre ele e seu irmão, prefeito da cidade.
Azevedo é muito fiel ao texto original, mas o enriquece com
sua visão política e militante, tanto pelas causas sociais como por aquelas
políticas deste destrambelhado momento por que passa o país. Serve-se também de
ótimos números musicais para dinamizar o espetáculo. (até Clara Carvalho canta,
e muito bem!)
O palco vazio do Teatro Aliança Francesa é preenchido por
poucos objetos, instrumentos musicais e pela participação de Tatah Cardozo que
indica a separação dos atos (que são cinco) e descreve o cenário de cada um
deles. O desenho de luz assinado por Gabriel Greghi e Wagner Pinto colabora de
forma discreta e eficiente para a ambientação das cenas. Figurinos de Anne
Cerutti.
O elenco. E que elenco!!
Raphael Garcia como Hovstad passa com muita energia a
subserviência a quem melhor lhe interessa em cada ocasião; Rodrigo Scarpelli
tem atuação sóbria como o simpático e indeciso Billing; César Baccan é
responsável por momentos de humor da peça com o seu ridículo Aslaksen. Lucas
Scalco e Thiago Liguori completam o grupo de cidadãos do balneário.
Augusto Pompeu abre a encenação com uma vibrante participação
musical e depois interpreta o sogro de Stockmann.
Lilian Regina é uma bela surpresa como Petra, a filha do
Doutor.
Sobre Clara Carvalho não é preciso reforçar sobre seu imenso
talento de atriz que aqui também revela que sabe cantar e dançar.
Sérgio Mastropasqua e Rogério Brito são os responsáveis pelos
momentos mais tensos da trama ao duelar com palavras sobre a posição de cada
um. São duas interpretações soberbas dignas de todas indicações de prêmios que
certamente ocorrerão ao final da temporada teatral de 2022.
Um Inimigo do Povo é brilhante em
todas suas três horas de duração, mas não há como não destacar seu momento
maior que é o quarto ato com a participação do público onde se realiza uma
assembleia para discutir as ideias do Doutor Stockmann. Ficção e realidade
poucas vezes estiveram tão próximas uma da outra.
A posição individualista de Ibsen se revela nas últimas
palavras do Doutor: “O homem mais forte que há no mundo é o que está mais
só”. Nesse momento Azevedo vai retirando todas as outras personagens de
cena deixando apenas o Doutor dançando. Aos poucos o elenco (não mais como
personagens) adentra o palco também dançando ao som de uma pulsante música.
Fim.
Ovação nos agradecimentos mais que merecida do público presente.
UM INIMIGO DO POVO cumpre injustificável temporada relâmpago de apenas quatro semanas no Teatro Aliança Francesa (última apresentação neste domingo, dia 1º de maio). Urge que espetáculo dessa importância volte ao cartaz para nova temporada com o maior alcance de público possível.
01/05/2022
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