segunda-feira, 31 de dezembro de 2018

O BEIJO NO ASFALTO – O FILME



        Não fui muito ao cinema neste 2018, mas tive boas surpresas com os filmes brasileiros. Desde o excelente documentário Quando as Luzes das Marquises Se Apagam de Renato Brandão, fazendo um poético levantamento dos cinemas da época de ouro da cinelândia paulistana, passando por Arábia de Alfonso Uchôa e João Dumans, o lindo Paraíso Perdido de Monique Gardenberg, o tenso  e bem realizado O Animal Cordial de Gabriela Amaral, a delicadeza de Benzinho de Gustavo Pizzi, a contundência de Alma Clandestina de José Barahona  (apresentado na Mostra de Cinema) e culminando com esse que para mim, não é só o melhor filme nacional do ano, mas o melhor filme a que assisti em 2018: O Beijo no Asfalto de Murilo Benício.
        Eu já havia assistido ao filme na Mostra de Cinema de 2017 e revê-lo só fez aumentar minha admiração por ele. Trata-se de excelente exemplo do diálogo do cinema com o teatro que com certeza teve como inspiração Tio Vânia em Nova York (1994) de Louis Malle, Ricardo III – Um Ensaio (1996) de Al Pacino e Moscou (2008/2010) de Eduardo Coutinho, mas tem vida própria demonstrando o talento do ator Murilo Benício como diretor (este é seu filme de estreia.


        Fotografado em deslumbrante preto e branco por Walter Carvalho, o filme tem cenas que se passam em mesa de ensaio, em camarim onde as atrizes ensaiam seus papeis, em cenário de um teatro onde também se avista a plateia. A direção joga com os planos criando uma saborosa mescla de ilusão e distanciamento. Os atores representam a si próprios e os personagens da peça de Nelson Rodrigues.
        Murilo Benício reuniu elenco de ouro para seu filme. Dá medo a escrotice do Amado Ribeiro de Otávio Müller; ótimo também Augusto Madeira como o delegado Cunha. Com muita dignidade Débora Falabella interpreta a esposa Selminha, papel vivido por Fernanda Montenegro na primeira montagem da peça em 1961. Lázaro Ramos empresta seu talento para a perplexidade do personagem Arandir, assim como Stênio Garcia para o problemático sogro Aprígio. Boa surpresa é a atriz Luiza Tiso que interpreta a cunhada Dália. Amir Haddad, em participação especial, faz as vezes do diretor da peça que explica as ações e as personagens para os atores. E por último a presença iluminada de Fernanda Montenegro como a vizinha Dona Matilde; a cena em que ela vem contar as novidades para Selminha é antológica e chega a ser aplaudida pelos espectadores.


        Em época de fake news, de delação e de abuso de poder, o texto de Nelson Rodrigues mostra-se atualíssimo e sua estrutura dramática é tão poderosa que consegue manter o suspense mesmo para quem conhece o surpreendente desfecho da história.
        As adaptações cinematográficas dos textos do autor nunca foram muito felizes, mas creio que ele ficaria muito satisfeito com o filme de Murilo Benício.
        Grande momento do teatro brasileiro, perdão, do cinema brasileiro, porque antes de tudo trata-se de magnífico exemplo de tradução cinematográfica de um texto teatral.

Cena da montagem teatral de 1961 com Oswaldo Loureiro (Arandir) e Fernanda Montenegro (Selminha)

        O filme estreou há menos de um mês e já está restrito a apenas uma sessão (21h) no Cine Belas Artes, portanto corra para ver.

        31/12/2018

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